Aline Dias - advogada
Enfim, o dia chegou. A CPMF – Contribuição Provisória sobre Movimentação ou Transmissão de Valores e de Créditos de Natureza Financeira – teve seu fim. Os resultados prático-financeiros para o contribuinte ainda são incertos, no entanto, a CPMF, eivada de inconstitucionalidades, não poderia mais persistir.
Referida contribuição foi criada com o fito de ser fonte de financiamento complementar para as ações e os serviços de saúde. No entanto, no decorrer dos anos, modificações legislativas alteraram suas características iniciais.
Veja-se que, a partir da Emenda Constitucional n°. 21/99 (clique aqui), a CPMF teve sua alíquota aumentada, sendo que o resultado desse aumento foi destinado ao custeio da Previdência Social e, posteriormente, ao Fundo de Combate e Erradicação da Pobreza. Além disso, a partir do ano de 2000, 20% do total de sua arrecadação passou a ser atingido pela DRU - Desvinculação das Receitas da União.
Não obstante essas modificações infligidas à sistemática da CPMF, sempre foi duvidoso o efetivo alcance dos objetivos pretendidos com sua criação no que tange ao financiamento da saúde.
Sobre o assunto, o Dr. Adib Jatene, Ministro da Saúde à época da aprovação primeira da CPMF, esclareceu1 que idealizou e defendeu a aprovação da contribuição como fonte suplementar2 de recurso para as ações em saúde.
Embora a finalidade da CPMF tenha restado clara à época de sua aprovação, o que se pôde constatar, da análise de dados oficiais sobre o financiamento da saúde, disponibilizados pela própria Receita Federal do Brasil em seu site, é que a CPMF não trouxe benefícios efetivos para o financiamento dessa área.
Isto porque o Governo utilizou os recursos arrecadados com a parcela da CPMF destinada à saúde como fonte substitutiva de recursos. Desse modo, contando com o valor que arrecadaria com a nova contribuição, realocou para outras áreas os recursos do Tesouro que iriam ordinariamente para o Ministério da Saúde. Em outras palavras, logo que aprovada a CPMF, as verbas até então repassadas para as ações e os serviços de saúde foram reduzidas.
A fim de se verificar como se deu a alocação de recursos na área da saúde após a criação da CPMF, veja-se a tabela a seguir3:
Veja-se que, considerando que a execução orçamentária da União no ano de 1997 foi superior à de 1996 (não havia CPMF), é possível afirmar que para o orçamento de 1997 o Governo deveria investir em saúde no mínimo o que foi investido no ano anterior mais o valor arrecadado com a CPMF.
Tendo isso em mente, pode-se afirmar que em 1997 o orçamento do Ministério da Saúde deveria ter sido de, no mínimo, R$ 21.285,44 bilhões4. Contudo, no período em análise, o investimento do Governo em saúde, desconsiderada a CPMF, foi de apenas 11.659,49 bilhões5, em contraposição a 1996, em que foi de R$ 14.376,08 bilhões.
Em 1998 o quadro se repetiu, sendo que a redução das verbas ordinárias para o Ministério da Saúde foi ainda maior. Nesse ano, a arrecadação da CPMF totalizou R$ 8.118,07 bilhões, porém, a execução orçamentária do Ministério foi de pouco mais de R$ 17.541,06 bilhões. Adotando-se o mesmo raciocínio de cálculo utilizado para o ano de 1997, tem-se que a União destinou para a Saúde em 1998, descontada a parcela referente à CPMF, apenas R$ 9.422,99 bilhões, o que é muito inferior, se comparado com o ano de 1996, antes da CPMF, quando o investimento no setor foi de R$ 14.376,08 bilhões.
A situação ora descrita se repetiu no decorrer dos anos, fato que pode ser constatado aplicando-se o mesmo raciocínio para os períodos subseqüentes. Absurdamente, ano a ano foram sendo retirados recursos ordinários do Ministério da Saúde, os quais foram substituídos pelo valor arrecadado com a CPMF, o que nitidamente contraria a essência dessa contribuição.
É evidente que para que a CPMF atingisse o fim para o qual foi criada, a União deveria manter o repasse ordinário de verbas para o Ministério da Saúde.
Tal obrigatoriedade, todavia, não constou da Emenda Constitucional que autorizou a criação da CPMF. Não obstante isso, era inerente à efetivação dos objetivos da CPMF que se mantivesse a alocação de verbas para essa área, pois evidente que a CPMF só cumpriria seu objetivo se as fontes de que o Ministério da Saúde dispunha anteriormente a ela fossem mantidas na mesma proporção.
Considerando tudo quanto até aqui dito e demonstrado, é pertinente a afirmação de que o fim dado à CPMF era diverso do almejado pela lei que a instituiu, motivo pelo qual consideramos a prática ora descrita como ofensiva aos ditames da boa-fé e da moralidade administrativa.
Oportuno relembrar que a Constituição Federal (clique aqui)estabeleceu em seu artigo n°. 37, "caput", que Administração Púbica direta e indireta de qualquer dos Poderes obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência.
Assim, consagrou-se o referido princípio como uma bússola da atividade administrativa, tornando-se possível a extração de conseqüências jurídicas a partir de regras morais.
Ora, é sabido que o Congresso Nacional aprovou a CPMF acreditando que estava aprovando uma contribuição que seria um incremento ao orçamento do Ministério da Saúde, e não uma fonte de substituição de recursos. Nas palavras do professor Márcio Cammarosano6:
"se o que levou o Congresso a aprovara CPMF foi a crença de que esta contribuição faria com que além do orçamento já existente no Ministério da Saúde se acresceria uma nova fonte de recurso para aprimorar o serviço de saúde, e, se isto não foi feito, pode-se dizer que o Executivo não foi e não está sendo responsável, que enganou, que abusou da boa-fé daqueles que aprovaram a CPMF, frustrou as expectativas dos representantes do povo que aprovaram a CPMF e, portanto, está violando o princípio da moralidade administrativa."
Celso Antonio Bandeira de Mello7 ensina que se compreendem no âmbito do princípio da moralidade os chamados princípios da lealdade e da boa-fé, e conclui dizendo que:
"Segundo os cânones da lealdade e da boa-fé, a Administração haverá de proceder em relação aos administrados com sinceridade e lhaneza, sendo-lhe interdito qualquer comportamento astucioso, eivado de malícia, produzido de maneira a confundir, dificultar ou minimizar o exercício de direitos por parte dos cidadãos." (grifamos)
No mais, há ainda que se considerar a finalidade da lei, o 'espírito da lei'. Celso Antonio Bandeira de Mello, ao falar do princípio da finalidade, diz que, por força deste, "a Administração subjuga-se ao dever de alvejar sempre a finalidade normativa, adscrevendo-se a ela". E completa:
Em rigor, o princípio da finalidade não é uma decorrência do princípio da legalidade. É mais que isto: é uma inerência dele; está nele contido, pois corresponde à aplicação da lei tal qual é: ou seja, na conformidade de sua razão de ser, do objetivo em vista do qual foi editada. Por isso se pode dizer que tomar uma lei como suporte para a prática de ato desconforme com sua finalidade não é aplicar a lei; é desvirtuá-la; é burlar a lei sob pretexto de cumpri-la.8 (grifamos)
Diante disso, resta-nos apenas concluir que o Governo agiu com clara má-fé, contra a moral e a ética, enganou, ludibriou a todos que acreditavam na aprovação de uma fonte de financiamento ‘a mais’ para as ações e os serviços de saúde.
E agora novamente pretendiam que acreditássemos na importância da CPMF para a saúde! Que importância é essa???
De fato, a importância suscitada não era de interesse público, em verdade, a CPMF sempre foi apenas mais um meio que se encontrou para aumentar a arrecadação, tendo servido de mera fonte de substituição orçamentária para que o Governo pudesse utilizar os recursos dantes destinados à saúde a seu bel-prazer.
Fonte essa que acabou!!
E agora, José?
A fonte secou.
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